Coleção Amigos do Vlado
VLADIMIR HERZOG
Fotogramas de uma vida
Um jornalista foi assassinado nos porões da ditadura que sufocou o Brasil entre 1964 e 1985. Foi mais um entre os tantos mortos e desaparecidos por obra do aparato repressivo então instalado no país, que adotava a cartilha da tortura e da violação de direitos como política de Estado.
O dia era 25 de outubro de 1975, um sábado. O local, a sede do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na rua Tutóia, na capital paulista. O personagem: Vladimir Herzog, de 38 anos, diretor de Jornalismo da TV Cultura, de São Paulo. O fato: depois de apresentar-se voluntariamente na manhã daquele dia para prestar depoimento, foi constrangido, torturado e morto. À tarde, o comando do Segundo Exército, ao qual o DOI-Codi estava subordinado, informou que a causa da morte do jornalista fora “suicídio”. A fajutice da versão propalada pelos militares e a indignação que o episódio suscitou haveriam de provocar um movimento que marcou a história da luta pela redemocratização do país. Dessa vez a vítima era um reconhecido pacifista, um intelectual em ascensão, apaixonado por cinema, crítico das burocracias partidárias e da opção – já então malograda – da luta armada como forma de enfrentamento e superação da ditadura. Era conhecido e respeitado em seu meio, tinha mulher, dois filhos e endereço fixo, atuava profissional e politicamente às claras, sem porra-louquices e submetendo-se aos limites impostos pelo governo autoritário. Era um sujeito atencioso e doce, como atestam as pessoas que com ele conviveram.
Os desdobramentos desse crime foram avassaladores. A estupefação e a raiva, que num primeiro momento contaminaram apenas o círculo dos amigos próximos a Herzog, logo derivaram para uma revolta difusa, resistente, cidadã, corporificada num culto ecumênico em memória do jornalista que reuniu pelo menos oito mil pessoas, na Catedral da Sé e nas imediações do templo, no coração de São Paulo, a despeito do forte esquema repressivo montado pelos órgãos de segurança para inibir o ato. A ditadura foi inapelavelmente arrostada naquele dia. Com coragem, sem medo.
É consenso entre analistas e historiadores que o ato religioso realizado naquela sexta-feira, 31 de outubro de 1975 – conduzido a seis mãos pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, pelo rabino da Confederação Israelita Paulista, Henry Sobel, e pelo reverendo Jaime Wright, pastor presbiteriano –, e a mobilização social dele decorrente, em claro desafio ao regime, marcaram o início do fim da ditatura no Brasil.
E o protagonista involuntário desse movimento, um dedicado jornalista e cinéfilo, sem vocação alguma para heroísmos de qualquer espécie, acabou reconhecido e cantado em prosa e verso, no Brasil e no exterior, como símbolo da luta por justiça e pelos direitos humanos. Em que pese a barbaridade do crime, sua morte não apagou a história de vida rica e generosa de um profissional inquieto, obcecado pela qualidade do jornalismo que praticava, devotado ao bem comum. Não obscureceu a lembrança do editor rigoroso, do amigo solidário, do intelectual instigador, do potencial cineasta pronto para desabrochar.
Sua morte não impediu que se revelasse uma vida a um só tempo intensa e fascinante, que hoje subsiste tanto na lembrança dos seus contemporâneos como em livros, pesquisas, trabalhos artísticos, escolas, logradouros e prêmios de jornalismo. E na atuação do Instituto Vladimir Herzog (IVH).
Esta coleção de histórias sobre Vladimir Herzog, produzida pelo Museu da Pessoa e o IVH com base na memória de pessoas que lhe foram – e são – próximas, é o retrato de uma época e uma pauta para o futuro. Uma celebração da vida.
Vlado vive.
Texto por Luiz Egypto
Acesse a coleção no Acervo do Museu da Pessoa